30 de ago. de 2012

Meu querido escafóide

Você sempre esteve aqui, inteirão, junto comigo para o que desse e viesse. Apesar disso, eu não sabia nada sobre você, nem seu nome, e confesso: nosso relacionamento provavelmente seguiria sendo como sempre foi -- distante, pra não dizer inexistente. Peço desculpas, mas é que, às vezes, a gente só se dá conta de certas importâncias quando acontece uma ruptura. Se você não tivesse rachado, eu não saberia como pode ser difícil escovar os dentes, pentear o cabelo e fazer uma infinidade de coisas que sempre foram "grátis", afinal, você nunca cobrou por nada disso! Entendo sua revolta, mas, poxa, você sabe que sou da esquerda, não precisava ser tão radical assim... Bom, agora é tarde, não dá pra gente negociar, e você me pede paciência. Vamos em frente! Nosso primeiro contato foi meio traumático, é verdade, mas temos pelo menos trinta dias pra ajustar as coisas e restabelecer o nosso vínculo. Enquanto isso, aproveito pra conhecer melhor o seu irmão gêmeo que tem feito o possível e o impossível pra me mostrar tudo o que a mão direita é capaz de fazer -- e eu que sempre chamei a pobrezinha de desajeitada?
...
No sábado, conversando com meu querido escafóide, no pátio do pronto-socorro.

24 de ago. de 2012

Eu me lembro

A vila de sobradinhos geminados, a calçada estreita, a rua de paralelepípedo, o canteiro de gerânios vermelhos, a porta com janelinha de vidro atrás da grade, o sorriso da avó abrindo a janelinha, a sala apertada, os móveis escuros, a poltrona grande com pata de cavalo, a mesa de madeira, e a menina sentada no chão, debaixo da mesa-casinha, apartando a briga da boneca loira com a morena por causa do vestido vermelho de bolinhas brancas.

23 de ago. de 2012

Recreio

Estava trabalhando na maior concentração quando veio a dúvida: como é mesmo o título daquele livro? Google após google acabo chegando no blog da Livreira Anarquista, de onde tirei essa lindeza de ilustração, depois de passar um tempão me divertindo com as "pérolas da sabedoria freguesa" ou: perguntas hilárias dos clientes que essa livreira atende, em algum lugar de Portugal. Delícia de recreio.

21 de ago. de 2012

Idades

Ontem eu vi um homem de quase 50 anos sendo de novo e ainda um menino.
Aconteceu enquanto ele me contava como era bom quando o avô aparecia pra jantar e esticava a visita até a hora em que ele e os cinco irmãos tinham que ir pra cama. Naquelas noites especiais, os seis se amontoavam no quarto maior, o das meninas, pra ouvir história, mas ele, caçula da turma, nunca conseguia ficar acordado até o final, a voz do avô embalando o sono, preenchendo a imaginação com paisagens, personagens e sonhos. Ouvindo-o falar do esforço que fazia pra não adormecer e do quanto se sentia frustrado no dia seguinte, vi o homem e o menino franzindo os olhos num mesmo tempo -- o tempo que nos suspende e nos atravessa continuamente com todas as idades que vivemos: naquele momento, ele tinha 1, 2, 3... e também quase 50 anos.

20 de ago. de 2012

Bom de ler

"Tina gosta muito disso que está lhe acontecendo agora, essa nova vida que leva desde que sua amiga veio morar ao lado da sua casa. A mãe de Carlota nunca está aborrecida ou nervosa, como às vezes fica sua avó Hermínia; a mãe da sua amiga tampouco tem pressa, então as três vão andando pelas ruas como se fossem uma mãe e suas duas filhas. Ela sabe, porém, que a mãe de Carlota não é a sua mãe, e então, em meio à alegria que sente por comer amendoim ou sentar-se com as duas num banco da praça, aflora também uma tristeza que não sabe bem de onde vem e que às vezes demora muito para ir embora."

Terminei "A menina, o coração e a casa" encantada com a escrita da argentina María Teresa Andruetto.

15 de ago. de 2012

Max

Vou caminhar com a firme intenção de me concentrar nos nomes, o do cachorro e o do gato. Não estou conseguindo continuar a história sem esses nomes, e sei que não vou encontrar o que preciso no google ou nos livros. Então resolvo dar uma volta, arejar sempre é bom, vai que tropeço numa boa ideia, quem sabe? Pra não ficar andando a esmo, sigo na direção do parque e ponho em prática meu plano inicial: listar possibilidades de nomes em ordem alfabética. Nem bem começo, já empaco: um nome para o cachorro com a letra A? Que coisa mais difícil! A...Astolfo, Armagedon, ai, ai, ai, melhor ir em frente, Boris, Billy e... E o que mesmo? Muito antes de chegar à letra C, meus pensamentos atravessam a rua -- um deles se encanta com uma árvore toda florida, outro escapa pra ouvir a conversa de duas mulheres que passam e, quase ao mesmo tempo, meus olhos colam na capa da revista que o jornaleiro está pendurando na frente da banca. Estou flanando a quilômetros do meu assunto quando entro na padaria, e então acontece: enquanto espero a próxima fornada de pão de queijo, com água na boca, vejo o cão. Um golden grandão de pelo clarinho avança na minha direção, puxando o menino que segura a coleira, e quando os dois entram na fila, bem atrás de mim, adivinho que estou prestes a descobrir o nome do meu personagem.

10 de ago. de 2012

Ai, que delícia!

Quando eu menos espero ela aparece: a bruxa Creuza aterrissou na Livraria Casa de Livros e acabou até ditando o texto para o projeto Literatura na Parede.

9 de ago. de 2012

7 de ago. de 2012

Dois meninos

O mais alto deve ter sete, oito anos. O outro não tem mais do que cinco. O maior corre atrás do menor, em volta do fusca creme, estacionado num corredor-garagem, ao lado da loja de tintas. Num dos cruzamentos da rua Cerro Corá, o farol fica verde, amarelo, vermelho e novamente verde, mas os carros não se movem, então abaixo o volume do rádio e fico ouvindo a risada gostosa dos meninos, os gritinhos aflitos do pequeno cada vez que o outro inverte o sentido do pega-pega, tentando surpreendê-lo em pleno voo. Pra que a brincadeira não termine, o mais velho diminui o ritmo, quase para até o menorzinho recuperar o fôlego. É só um instante e logo estão correndo de novo, rindo do que já sabem que vai acontecer: o maior repete a armadilha, o pequeno leva o mesmo susto, como se fosse a primeira vez.
Quando o trânsito começa a fluir, avanço sem pressa, olhando os meninos pelo espelho retrovisor, agradecida por me fazerem lembrar que a alegria não precisa de motivo pra acontecer.
...
Andei remexendo em textos antigos, como esse, publicado aqui.

2 de ago. de 2012

O sabor das palavras

Framboesa: a frutinha é linda, e a palavra que a nomeia também é. Mas o sabor quase sempre me decepciona, como se o visual e a sonoridade do nome prometessem muito mais. Acontece o mesmo com a exótica carambola -- fico com água na boca, seduzida por essa palavra tão gostosa de se falar e acabo me frustrando com o sabor (geralmente) sem graça da fruta.
Dias atrás, uma amiga confirmou minha teoria lembrando da famosa sobremesa que a avó húngara preparava quando ela era pequena. O doce de carambola nem era bom, ela me diz, mas fazia o maior sucesso porque ficava lindo dentro do pote e tinha um nome delicioso: "compota de estrelas".
O sabor de certas palavras é mesmo irresistível.